CIDADANIA E PAIDEIA

André Gonçalves Fernandes

24/11/2011 

Todo homem é um filósofo, como dizia Gramsci, ainda que falte para muitos a estrutura que a filosofia oferece para encontrar as respostas que todo homem procura, individualmente e em sociedade, já que todo homem é dado a conhecer, naturalmente, a realidade que o cerca. No âmbito social, o dado histórico aponta que não há sociedade sem direito, nem direito sem sociedade.

A existência de normas jurídicas, mais do que fundada numa obra da consciente vontade dos homens, resulta de uma necessidade natural: a vida gregária gera naturalmente uma ordem social, fato que pode ser observado mesmo nas sociedades de malfeitores. E o homem, como ser racional e transcendente, precisa de uma ordem, porém, não de uma ordem instintiva, como a de uma colmeia, mas de uma ordem justa.

Logo, quando se confere um atributo dessa envergadura à ordem social, necessariamente, por se tratar de uma realidade do mundo do espírito, o direito, instrumento social para a concretização da justiça, é um ser que depende sempre de um elemento valorativo que o sustente, a ser escolhido pelos homens que compõem a própria sociedade.

    A par disso, o homem é um animal político e, como consequência, requer uma educação consciente que permita a formação da pessoa para a vida racional em sociedade, ou seja, uma educação no sentido mais elevado da palavra paideia, cuja origem grega remonta justamente à busca do sentido de uma reta teoria da educação e do agir do homem em sociedade.

Platão já definia paideia como a essência de toda a verdadeira educação, que dá ao homem o desejo e a ânsia de se tornar um cidadão perfeito e o ensina a mandar e a obedecer, tendo a justiça como fundamento (cit. in Jaeger, 1995: 147). Percebe-se que este processo de formação geral, que tem por tarefa construir o homem como homem e como cidadão, tem a justiça como apoio valorativo, a mesma justiça que também sustenta a vida em sociedade e o direito.

Na polis grega (e, depois, na civitas latina), a noção de cidadão englobava o exercício de todos os direitos e a assunção de todas as responsabilidades na condução dos destinos da sociedade por aqueles que possuíam o status citadino. Uma participação dessa envergadura era explicada pela forma direta pela qual os gregos exerciam a democracia: uma atuação permanente e imediata de todos os cidadãos nas decisões que afetassem a vida na polis, o horizonte grego de realização do homem como um todo.

Baseado no conceito de paideia, pode-se notar uma evolução no sentido de participação mais ativa do cidadão na vida social. Pitágoras (570-490 a.C.) entendia que o ideal para o homem seria a vida meramente contemplativa, mais do que a vida ativa: a busca de um horizonte de sentido e de contemplação (theorein) seria mais nobre para o espírito humano do que agir ou simplesmente viver (praxein). Logo, se fosse hoje, seria melhor assistir a um jogo de tênis do Federer a ser o próprio jogador. Para quem é tenista como eu, tenho lá minhas dúvidas…

Platão (427-347 a.C.) forma seus discípulos como agentes de mudança social, sem deixar de reconhecer a vida contemplativa como o ideal do homem. Sintetiza o ideal do governante-filósofo e de uma sociedade formada por cidadãos livres e virtuosos, na qual o agir moral seria fruto da consciência interior e não da mera sujeição coercitiva às leis.

Aristóteles (384-322 a.C.), por sua vez, deixa a teoria e vai à prática. Sistematiza uma visão global da realidade, a partir de uma dimensão metafísica, antropológica e ética fundada empiricamente no conhecimento do mundo e da natureza humana. Como mestre de Alexandre Magno (356-323 a.C.), passa a forjar um ideal de sociedade, ao lhe ensinar os princípios filosóficos que, por meio da espada conquistadora de mundos do aprendiz, forjará os alicerces da civilização helênica.

Hoje, em que o padrão democrático é o representativo, no qual alguns se dedicam à atividade política e outros, digamos, mais profissionalmente ainda, o exercício da cidadania não pode se resumir ao aperto de uns botões da urna eletrônica no dia da eleição a cada quatro anos.

Exige de cada um de nós uma participação efetiva e constante, pelos mais diversos e cada vez mais acessíveis meios de comunicação, nas decisões sobre os destinos da cidade, a fim de se diferenciar o justo e o injusto, o certo e o errado na condução da coisa pública, de maneira a influenciar efetivamente nas políticas públicas. Esquecer o ideal da paideia grega é prova de cegueira ou de covardia. Ou de uma triste combinação das duas. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito e professor do Instituto Internacional de Ciências Sociais ([email protected])

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