QUANDO NOS PERDEMOS?

Fernando Schüler

Em vez de fincar pé na Constituição, criamos a lógica da exceção.

“Por que a democracia?”,  perguntava um representante diplomático ao professor Francisco Weffort, naquele início de anos 80. Ele tinha curiosidade em saber por que se falava tanto em democracia, e quase mais nada em “revolução”, naquele apagar das luzes do regime militar. Weffort usou a questão para abrir seu livro Por que Democracia? publicado em 1984, e seu argumento jogou luz sobre o Brasil que surgia à frente: um país com um robusto, e raro, consenso em torno da regra democrática. Anos depois fizemos a nova Constituição, e logo a primeira eleição presidencial. Mesmo o impeachment de 1992 mostrou quanto o pacto democrático havia fincado raízes na vida brasileira.

Ao longo de duas décadas que vão dos anos 90 até quem sabe os movimentos de rua de 2013, o tema da democracia virtualmente desapareceu do nosso cotidiano político. Não por irrelevância, mas pelo consenso. Ministros do STF se sucediam, a Justiça Eleitoral agia com discrição, e a liberdade de expressão era dada como um valor consolidado. Em algum momento, na última década, isso mudou. Dias atrás me dei conta disso em um debate, quando alguém perguntou, com alguma angústia, em que momento a “questão democrática” havia retornado ao centro do debate brasileiro. Eu me lembrei daquela pergunta feita a Weffort, nos anos 80. O tom agora não era o de uma agradável surpresa, mas sombrio. Algo na linha: quando nos perdemos? Em que momento, temas que já considerávamos superados, a censura, a conversa sobre “golpe”, o “cala-boca” a deputados e jornalistas, e o medo de falar, mesmo nos espaços privados, como os grupos de Whats­App, haviam voltado à tona?

É difícil precisar. É possível que tudo venha da polarização tóxica da última década e meia. O “nós contra eles”, o “nunca-antes-neste-país”. E logo a reação conservadora. A ideia da “salvação nacional”, da “nossa bandeira que jamais será vermelha”. O pano de fundo disso está na migração do nervo da política para o universo tribal da internet e das redes sociais. A nova multidão digital, pouco afeita ao diálogo e à reflexão, levando de arrasto boa parte do mundo político e do mundo-mídia. Ainda me lembro da desistência anunciada por um senador e dizendo algo melancólico: “Gosto de política pública, não tenho chance como youtuber”.

Março de 2015: ato anti-Dilma

As eleições de 2014 já apresentavam um tipo novo de polarização. Com direito a um sinal: o pedido de auditoria eleitoral, feito pelo PSDB. Ainda que tímido, foi um voto de desconfiança ao sistema, ao embalo do barulho digital. Na esteira das eleições, surge um novo fenômeno: os movimentos de rua de viés liberal ou conservador. Em um domingo de março de 2015, o movimento anti-Dilma fez o maior comício do país depois das Diretas. A rua havia sido um espaço da esquerda, mas os ventos agora mudavam de direção. A própria lógica da “oposição frontal” havia transbordado. Quem não se lembra do “Fora Sarney”, “Fora Collor, “Fora FHC”, como depois do “Fora Temer”, “Fora Bolsonaro”? Naquele início de 2015, a pauta era um sonoro “Fora Dilma”. Alimentado pela crise, veio o impeachment. The Economist escreveu que aquilo iria envenenar durante muito tempo a política brasileira, e acertou. Diferentemente de Collor, o PT é uma força estruturada na vida brasileira, e soube converter a derrota em narrativa de guerra. E aqui surge o paradoxo: ao apostar na “narrativa do golpe”, o partido põe em xeque as instituições da democracia brasileira. Em especial, o Congresso e o STF. Se hoje dizemos que as instituições são postas em questão, há ali um incômodo precedente.

Em 2018, Bolsonaro vence, e a partir daí começa um estranho jogo. De um lado, a recusa permanente da legitimidade de quem venceu. O “coiso”, o “fascista”, o “inominável”, o “gado”; de outro, a tensão, o duplo sentido levado ao estado da arte. O “nosso Exército”, as eleições na condicional, a frase infeliz, no 7 de Setembro. E finalmente os temas tóxicos, a “fraude nas urnas eletrônicas”, o “Artigo 142”. Tudo isso como avant-première daquele domingo vexaminoso, que por muito tempo manchará não apenas certa “direita”, mas nossa democracia, no seu dia talvez mais constrangedor.

A resposta a isso tudo poderia ter sido, desde o início, uma reação altiva das instituições, mas nem isso conseguimos fazer. Em vez de fincar pé nos preceitos da Constituição, criamos uma difusa lógica de exceção. Criamos o crime inexistente de fake news, retomamos a censura prévia em larga escala, cancelamos passaportes e bloqueamos contas de jornalistas, fizemos terra arrasada da inviolabilidade parlamentar, do direito ao contraditório, do simples acesso da defesa aos autos de processos. Criamos inclusive um procedimento novo: a prerrogativa do Estado para “apagar” do mundo digital quem seja interpretado como “risco à democracia”. Tudo sob o signo do autoengano, que inclui achar um tuíte do PCO um risco à democracia, ou fazer de conta que a censura prévia não é censura prévia. Dias atrás, uma jornalista defendeu o banimento de parlamentares, sem devido processo ou manifestação do Congresso, a partir da lógica abstrata da “defesa da democracia”. Nenhuma pergunta sobre qual o crime, ou sua tipificação. E seguida pela multidão em transe, em um país onde o vezo autoritário não vem só do Estado, mas finca raízes na sociedade. No jornalismo, na academia, na algazarra digital, em tudo o que é tocado pela polarização obsessiva.

Dias atrás, houve um interessante episódio. Um grupo de advogados pediu ao STF a suspensão da posse de mais de uma dezena de deputados, por um suposto apoio aos atos do dia 8 de janeiro. Consultada, a Procuradoria-Geral da República ofereceu uma singela lição sobre o estado de direito. Disse que “não se extrai, ainda que com esforço interpretativo, qualquer indício de crime” nas manifestações daqueles parlamentares. Lembrou que temos uma Constituição que assegura a inviolabilidade dos parlamentares em “palavras e opiniões” e que “eventuais atos praticados por deputados deverão ser apurados nos termos do Código de Ética da Câmara de Deputados”. Por fim, que “instauração de procedimento criminal sem o mínimo de lastro probatório viola direitos fundamentais”. Uma posição rara no atual transe brasileiro, com uma distinção elementar: uma coisa são opiniões, detestáveis que sejam; outra são crimes, que só existem por força de lei, não brotando da vontade dessa ou daquela autoridade.

Nossa dificuldade, quem sabe, reside no fato de que soubemos construir uma democracia, mas não uma democracia liberal. E muito menos uma cultura liberal enraizada na sociedade civil. Vai daí o mal-estar: os direitos estão todos lá, na Constituição, mas dançam ao sabor das exceções de cada dia, no mundo real da política. Eis o desafio. Escrever, debater, insistir sobre direitos, sobre o império da lei, até que aquela pergunta sobre “por que a democracia?”, feita ao mestre Weffort, há quase quarenta anos, dê lugar a uma quase-resposta: por-que não a democracia liberal?

Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

A opinião do autor não reflete necessariamente a opinião do site.

Fonte: publicado em VEJA de 3 de fevereiro de 2023, edição nº 2827

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