ÉTICA POLÍTICA: IDADE MÉDIA, RENASCENÇA, HOJE

Valter de Oliveira

Introdução: o governante ideal

Qual tipo de governante você deseja? Técnico, competente, pragmático? Humano, sensível, preocupado com o bem comum e em cuidar do povo? Corajoso, determinado, profundamente honesto? Sagaz em enfrentar o mal, mas que sabe dissimular quando necessário?

Muitas outras qualidades ou características podemos desejar em um governante. Em geral, gostemos ou não, a imensa maioria do povo gostaria que ele tivesse as qualidades que são conforme a uma ética aristotélica e tomista. Mesmo não conhecendo filosoficamente nada do assunto. É algo que está impregnado em nossa alma, em nossa cultura. Por outro lado, na chamada classe política, tal concepção do governante foi abandonada há quase 500 anos. Isso ocorreu em 1532, quando foi publicada “O Príncipe”, famosa obra de filosofia política de Maquiavel. Ela provocou uma tremenda revolução.

As qualidades dos governantes gregos e cristãos

Com efeito, para o historiador Rafael Ruiz, em sua obra “O Espelho da América” na Antiguidade clássica e na Idade Média, o governante “era, ou deveria ser, alguém que possuísse as mais altas qualidades de excelência humana e, mais especificamente, alguém dotado das virtudes cristãs. Tratava-se de uma tradição que, através do cristianismo e dos autores medievais cristãos, entroncava com o conceito grego de areté, aquela qualidade, ou melhor, aquele conjunto de qualidades e virtudes que caracterizavam o homem bom, o homem excelente. Dessa maneira, para esses autores, a decisão política só poderia ser acertada se o Príncipe tivesse um leque enorme de virtudes, principalmente a prudência, a temperança, a fortaleza, a justiça, a liberalidade, a magnanimidade, a piedade e tantas outras virtudes clássicas e cristãs. Esse pensamento estava ligado à ideia aristotélica de “justo meio” (op.cit. p.54).

Ele continua:

Aristóteles

“Para Aristóteles, a decisão certa encontrava-se num justo meio termo entre duas opções opostas, que só poderia ser decidido em circunstâncias concretas”. Então, para encontrar a solução mais adequada para um problema, era necessária prudência e estar dotado das virtudes que citamos. Ou seja, se não fosse virtuoso dificilmente acertaria qualquer decisão política. Isso foi aprofundado da Idade Média. O príncipe, conforme a moral cristã, deveria conduzir a política, tendo em vista fins necessariamente bons, usando apenas os meios adequados e honestos.

Acontece, lembra Rafael Ruiz, que sabemos que mesmo um governante prudente pode errar. E aí, o que fazer? Exatamente o que faz toda pessoa reta. Se é boa e prudente revê suas atitudes e corrige o erro. Ao agir assim só se engrandece, melhora seu caráter, torna-se ainda mais prudente.

Tudo muda com Maquiavel (1469-1527)

Sucede que o final da Idade Média foi um período de profunda crise moral e religiosa. Após ela tivemos o surgimento da Idade Moderna. E no seu início que a obra de Maquiavel vai propor uma nova ética política. Não se tratava mais de discutir as qualidades pessoais do governante, como nós gostamos de fazer. O que importava era entender como se deveria alcançar o poder e como não perdê-lo. Em suma, para o filósofo…, “a característica do homem prudente será a de realizar seus atos e tomar suas decisões sem ser afetado por eles. Ou seja, o caráter do homem prudente seria precisamente a ambiguidade de caráter” (op.cit.p.55).

Aparência e prudência em Aristóteles e Maquiavel

Maquiavel

 Voltando ao pensamento aristotélico lembremos que este reconhecia que a realidade é complexa. Ela existe mas há uma espécie de véu que a encobre e dificulta que seja vista claramente. Apesar disso ele julgava que o governante seria capaz de desvelar a realidade

“Para Maquiavel, ao contrário, é o Príncipe quem deve revestir-se de aparências para conseguir os seus objetivos, porque o povo julga pelo vê:

(…) os homens, em geral, julgam mais pelos olhos do que pelas mãos, pois todos podem ver, mas poucos são os que sabem sentir. Todos veem o que tu pareces, mas poucos o que és realmente, e estes poucos não têm a audácia de contrariar a opinião dos que têm por si a majestade do Estado” (MAQUIAVEL, 1983, P. 75) – (op.cit. p. 56). 

Em suma, se o povo julga pelo que vê – ou que imagina ver – não é mais preciso que o governante tenha uma lista interminável de qualidades e virtudes. O importante é ele saber “ e medir os efeitos e resultados de suas ações, tendo em vista o bem proposto. A ação política seria bem-feita se levasse à obtenção desse resultado. Bastaria

(…)“disfarçar muito bem esta qualidade e ser bom simulador e dissimulador. E tão simples são os homens, e obedecem tanto às necessidades presentes, que aquele que engana sempre encontrará quem se deixe enganar. (MAQUIAVEL, 1983, P.74). (op.cit. p. 57)

Em suma, dentro do contexto renascentista, “Maquiavel introduz definitivamente a distinção entre o “ser” e a “aparência”. Tudo isso “passa a carecer de sentido no mundo moderno inaugurado por Maquiavel”. Eis suas palavras:

“O príncipe não precisa possuir todas as qualidades acima citadas bastando que aparente possuí-las. Antes, teria eu a audácia de afirmar que, possuindo-as e usando-as todas, essas qualidades seriam prejudiciais, ao passo que, aparentando possuí-las, são benéficas; por exemplo, de um lado, parecer ser efetivamente piedosos, fiel, humano, íntegro, religioso, e de outro, ter o ânimo de, sendo obrigado pelas circunstâncias a não o ser, tornar-se o contrário. (MAQUIAVEL, 1983, p. 74) (op.cit. p. 57).

Mais adiante Maquiavel estabelece definitivamente o princípio que o tornará célebre ao longo da história:

O fim justifica os meios

“Nas ações de todos os homens, máxime dos príncipes, onde não há tribunal para que recorrer, o que importa é o êxito bom ou mau. Procure, pois, um príncipe vencer e conservar o Estado. Os meios que empregar serão sempre julgados honrosos e louvados por todos, porque o vulgo é levado pelas aparências e pelos resultados dos fatos consumados”  (MAQUIAVEL., 1983, P. 75) (Op.cit. p. 57-58).

Duro? Sem dúvida. Há mais.

O novo príncipe, afirmava Maquiavel

“(…) não pode observar todas as coisas a que são obrigados os homens considerados bons, sendo frequentemente forçado, para manter o governo, a agir contra a caridade, a fé, a humanidade, a religião. É necessário, por isso, que possua ânimo disposto a voltar-se para a direção a que os ventos e as variações da sorte o impelirem, e, como disse mais acima, não partir do bem, mas, podendo, saber entrar para o mal, se a isso estiver obrigado. (MAQUIAVEL, P,1983, P. 74) (Op.cit. p.58-59).

Conclusão

É assim que o jogo político é jogado. Gostemos ou não. É parte do mundo real. Tal visão da ética política é parte de um processo de secularização que começou na Renascença com o chamado humanismo. Aquele tipo de humanismo que afirmou que Deus não é o centro de nossas vidas. Processo que foi sucessivamente aprofundado por todas as ideologias que advogam a destruição da influência cristã e o direito natural na sociedade.

Pode ser mudado?

Pode. Para começar é preciso entender o mundo real e não se deixar levar pelas aparências. Por mais difícil que pareça ainda é possível conhecer a essência do real.

Aplique tudo isso, aos embates políticos que assistimos há décadas e tire suas conclusões. Sem temer o peso da realidade e nem deixar de ser protagonista.

Por pior que pareça a guerra, não desista. Como disse o poeta: “Vencer sem luta é triunfar sem glória”.

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Bibliografia: RUIZ, Rafael. O espelho da América: de Thomas More a Jorge Luis Borges. – Florianópolis: Ed. da UFSC, 2013.

Observação: 1. os destaques em negrito são do site.

                      2. O poeta é Pierre Corneille, dramaturgo francês do tempo de Luis XIV.  

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