LIBERDADE: UM ASSOMBROSO E MISTERIOSO FENÔMENO HUMANO

Gustavo França

A liberdade é um dos mais assombrosos e misteriosos fenômenos humanos. Objeto dos mais íntimos e desesperados anseios do coração humano, verdadeiramente desconhecida grande parte do tempo, temida, admirada, difamada, enaltecida.

Falar sobre a liberdade é um dos grandes desafios do filósofo. Se filosofar é o transbordar da admiração que sentimos diante do mundo e de sua profundidade, poucas coisas elevam tanto o espírito em maravilhamento e em reverência. A liberdade nos abre o mundo interior e, com ele, a porta para o transcendente, acrescenta um novo ponto de vista à realidade que se desdobra à nossa frente e nos assegura o tesouro da identidade.

No nível mais básico e imediato, a liberdade é um fato metafísico fundamental sobre a condição humana. Todos nós, ao vivermos e agirmos no mundo, temos a consciência primeira de ser livres, de possuir livre-arbítrio, isto é, de ser capazes de dar às nossas ações uma causalidade absolutamente independente das causas mecânicas.

Sei que minhas ações se originam numa decisão consciente da minha vontade, sem a qual não poderiam vir a lume. Se estou lendo este post, sei que poderia não estar, que poderia estar assistindo a um filme ou me entretendo com um livro.

Esse fato é uma constatação inevitável. Não é possível, sem contradição prática, negar a liberdade. Aquele que argumenta contra a liberdade só pode fazê-lo pressupondo que é livre para defender tal tese ou não e que aquele que escuta é livre para acatá-la. O criminoso que diz ao juiz que não deve ser condenado porque não era livre para deixar de realizar seu ato, ao fazê-lo, implicitamente pressupõe que o magistrado é livre para deixar de condená-lo.

O livre-arbítrio, embora não esgote a liberdade, é traço essencial de nossa constituição humana e não pode ser ignorado. O fato de correntes filosóficas insensatas e superficiais terem reduzido a liberdade a essa mera liberdade de escolha não deveria autorizar que considerássemos o fato da liberdade algo a ser diminuído, ou mero “meio para os verdadeiros bens”. O livre-arbítrio é o único caminho para o ser humano se realizar plenamente, é seu modo próprio peculiar de erguer a perfeição pessoal a que é vocacionado.

O fenômeno da liberdade, no entanto, se desenvolve em dois âmbitos mais profundos. A capacidade de escolha consciente do homem está ordenada, como tudo em sua constituição essencial, à perfeição de sua natureza racional. O homem, como todas as coisas, possui, inscrito em sua estrutura substancial, seu telos, o pleno desenvolvimento de sua humanidade a que naturalmente tende.

À diferença, porém, dos entes irracionais, o homem, dotado de consciência de si, só pode realizar sua perfeição por livre decisão. Uma jaqueira não escolhe dar jacas. Um cachorro não escolhe chegar ao pleno desenvolvimento de suas potências naturais. Os seres não racionais simplesmente, por lei mecânica, cumprem sua finalidade – ou deixam de cumpri-la por algum acidente fisiológico. O homem não pode chegar a ser plenamente realizado como homem senão por um ato plenamente consciente.

Aí começamos a desvendar a liberdade num sentido mais completo. É claro que, no nível mais básico, somos livres quando escolhemos o sabor do sorvete. Entretanto, nessa ocasião, estamos apenas discernindo tecnicamente o que satisfaz melhor nossos apetites momentâneos – apetites esses que são arbitrários, em si mesmos alheios à nossa razão interior.

A liberdade mais plena está em seguir conscientemente uma determinação que não vem de nossos desejos sensíveis, mas de nossa consciência. Se a liberdade significa poder agir segundo uma decisão íntima de nossa vontade, sua autêntica realização é a capacidade de agir segundo uma lei que vem do íntimo de ser, que nossa consciência impõe como aquilo que, racionalmente, enxergamos como absolutamente bom.

Quando meu desejo momentâneo é permanecer o dia na cama, minha razão manda que me levante imediatamente e cumpra meus deveres. Quando só obterei vantagens de que necessito com uma mentira, minha consciência, contra todo o deleite empírico, determina que isso não me é lícito.

O ser humano traz, inscrita em sua razão, a lei que conduz sua natureza ao bem, à perfeição, ao pleno desenvolvimento pessoal. A capacidade de, por decisão íntima e personalíssima, submeter-se à ordem da própria consciência para fazer-se, por sua própria responsabilidade, uma pessoa boa é a verdadeira liberdade. A autodeterminação desagua na autorrealização pelo bem.

É o hábito de nos guiarmos pelo que nos mostra a consciência que, ao longo do encadeamento da vida humana, constrói o terceiro âmbito da liberdade (e o último que comentarei agora). Pelo uso constante e coerente da liberdade chegamos à construção da personalidade.

Quando agimos sempre conforme o que vemos com a inteligência própria como bom, moldamos todo ser àquilo que nos move interiormente. Adquirimos o tesouro da unidade da vida (e só nela há liberdade). Passamos a carregar, em todos os detalhes de nossa vida, a marca de uma identidade construída voluntariamente, assumida desde nossa vontade mais íntima.

Tomamos o controle de nossa biografia. Apresentamo-nos ao mundo como quem somos, com o nome que autonomamente nos demos. Sabemos o que significa ser nós mesmos, encontramos a resposta que guia nossas vidas e só por ela agimos. Somos donos de nosso interior, conquistamos um espaço em nossa alma que ninguém é capaz de nos tirar. O homem livre pode ser torturado e morto, mas não pode ser coagido – sabe onde põe seu interesse e seu espírito, e aí nenhum tirano pode tocar.

Gosto de dar como exemplo de liberdade plena uma das figuras mais admiráveis do século XX: o Cardeal vietnamita François-Xavier Nguyên Van Thuân (1928-2002). Van Thuân, quando era um jovem sacerdote, viveu os horrores da perseguição religiosa pela ditadura comunista no Vietnã. Encarcerado numa prisão local, suas memórias desse tempo são capazes de dar pesadelos em agentes da Gestapo.

Preso num cubículo escuro, em condições fétidas, às vezes conseguia celebrar silenciosamente a missa com migalhas de pão que lhe caíam ao chão. Nessa condição vil, Van Thuân fez o impossível de supor: converteu o carcereiro. Sim, um homem livre, com poder sobre os prisioneiros, olhou aquele miserável, atirado às traças como um animal imundo, e concluiu “quero ser como ele”.

A verdade é que o homem livre daquela história era Van Thuân. Sua personalidade ostentava uma integridade tão brutal que brilhava aos olhos de quem passasse. Tão atraente era essa identidade que ele carregava consigo, tão maior do que tudo era essa maravilha de ser aquilo que se decidiu, mesmo rastejando entre a poeira, que seu algoz quis ser cristão como ele. Era melhor ser Van Thuân no cárcere abjeto do que ser capataz em plena luz do sol.

Nossa liberdade interior é o bem maior porque não nos pode ser tirada. Um tirano pode exterminar multidões, mas não pode ganhar para si uma só alma livre. Stálin matou milhões, mas não convenceu ninguém. Jesus Cristo não matou ninguém, mas convenceu milhões. Sócrates pode rir de seus algozes e lhes dizer claramente que não se desculpará por ter dito a verdade, mesmo que o matem, porque viveu para a verdade e sabe que ela vale mais do que uma vida cômoda. A verdade não lhe podia ser tirada. Mataram-no, mas é a ele que admiramos quando lemos o relato de sua execução. Queremos ser Sócrates. Ninguém quer ser um dos furibundos que lhe deu a cicuta.

O homem livre sabe quem é, sabe o que o define como pessoa e por que vive sua vida. Não muda de rosto conforme o ambiente. Não é um em sua casa, outro no trabalho, outro em sua roda de amigos. O camaleão não é livre, mas escravo das circunstâncias. Vive a tragédia de não saber quem é, de não possuir identidade e face, mas apenas máscaras que troca segundo o mais confortável à plateia. Pode ser um bom cristão diante da família cristã, um homem da esbórnia diante dos amigos boêmios, um servil puxa-saco diante do chefe, um sádico autoritário diante da esposa e dos filhos.

Quando tivermos refletido o suficiente sobre quem estamos intimamente chamados a ser, poderemos fazer de cada ato de nossas vidas uma expressão de um espírito livre, de uma única e coesa peça e que, por isso, brilha intensamente, arrastando pelo exemplo em qualquer circunstância..

Fonte: postado pelo autor em sua página no FB em 27 de janeiro de 2022

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