AS TRAPALHADAS DO STF E A CRISE BRASILEIRA

  

 Gustavo França

 

Como prefiro o caos aos pacotes ideológicos de certezas comprados por quem se satisfaz em pertencer a um “lado” da disputa, esclareço algumas coisas para meus amigos leitores:

I) Obviamente, o STF rever uma jurisprudência cerca de dois anos depois de firmada, com praticamente a mesma composição da corte, no habeas corpus de Lula é fazer justiça conforme a cara do freguês.

Entretanto, a jurisprudência está claramente errada mesmo. A Constituição, em seu art. 5º, LVII diz, com todas as letras, que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Eu acho essa previsão absurda. Virtualmente nenhum país civilizado do mundo possui tão larga presunção de inocência (em homenagem ao interminável besteirol de Celso de Mello, registro que, além do Brasil, apenas Portugal e Itália). Contudo, está lá. É a lei. O Judiciário não existe para fazer o que é mais razoável, para dar sua opinião política ou para fazer o que o povo quer. Existe para aplicar a lei. Ninguém elegeu os Ministros do STF para nada. Eles não têm legitimidade para afastar uma previsão expressa da Constituição, por mais que não gostemos dela. Temos que defender a lei mesmo quando ela nos desagrada. O contrário é alimentar o monstro do ativismo judicial que foi a grande arma da esquerda nos últimos anos para enfiar goela abaixo da sociedade suas pautas progressistas (absolutamente à margem da lei).

Resultado de imagem para stfEvidentemente, só quem pode fazer essa crítica são aqueles que se opuseram aos estupros do texto constitucional perpetrados pela Suprema Corte em nome do “avanço da sociedade”. O mainstream da intelectualidade jurídica progressista, que defendeu o afastamento de um texto constitucional igualmente claro para aprovar ilegitimamente as uniões homoafetivas (art. 226, §3º da CF: “para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar”), além de outras decisões sem sombra de respaldo jurídico, como o aborto de bebês anencéfalos, a vedação ao financiamento privado de campanhas eleitorais, precisa de muito óleo de peroba para invocar agora “o texto da lei”. A esquerda neoconstitucionalista há muito defende o esquecimento do texto legal em nome de princípios abstratos, tirados do éter e sem significado rigoroso. Essa decisão, que agora desagrada a elite progressista, é fruto do monstro que ela criou. É um produto do instrumento com que ela própria armou o Supremo para fazer “direcionar” a história segundo suas convicções. Agora, o Supremo resolveu “guiar a história” para o outro lado. Bem feito. A culpa é exclusiva dos neoconstitucionalistas.

II) Indo além, o entendimento do STF confirmado esta semana se encaixa perfeitamente naquilo que os capitães do panprincipiologismo pós-positivista chamam de “interpretação evolutiva” ou de “mutação constitucional”. A disposição constitucional a respeito da presunção de inocência está claramente ligada a um contexto particular. A Constituição foi escrita num momento em que acabávamos de sair de uma ditadura militar, com todos os traumas de um sistema processual de porões. Impulsionados pela intenção de abjurar qualquer possibilidade futura de abusos investigativos e persecutórios, os constituintes plasmaram um conjunto de garantias processuais protetivas, algumas flagrantemente excessivas (como é o caso desta). Hoje, vivemos num contexto diferente. O trauma do autoritarismo castrense tornou-se mais longínquo, e se veem com muito mais clareza na prática as distorções criadas por um sistema processual de proteções irrazoáveis. As prioridades sociais mudaram. A configuração dos atores políticos mudou. A letra do art. 5º, LVII tornou-se obsoleta.

Chama à atenção que, na votação de quarta (1), a corte dividiu-se quase exatamente entre mais antigos no tribunal e mais novos (se Cármen e Toffoli “trocassem de lugar”, teria sido perfeitamente os seis mais novos versus os cinco mais velhos). Os Ministros mais apegados às justificativas históricas das garantias processuais a defenderam com unhas e dentes, enquanto aqueles cuja carreira jurídica está ligada a um novo contexto intelectual estão dispostos a abandoná-las. O marco teórico legitimador do ativismo judicial não permite qualquer solução diversa daquela que o STF apresentou. A sociedade mudou, surgiram novas situações fáticas não pensadas há trinta anos. O Judiciário deve “empurrar” o sistema jurídico nesse sentido, atualizando-o.

“Ah, mas a mudança de contexto social não pode derrogar o texto claro da lei”. Sim, eu acho isso. Mas você, caro amiguinho entusiasta do ativismo judicial “progressista”, não acha. Nunca achou. Sinto muito, mas agora é tarde para começar a achar.

III) Ao longo dos últimos anos, eu ouvi diversas vezes da boca dos artífices teóricos do ativismo judicial neoconstitucionalista (principalmente, do próprio Barroso), em ocasiões e se referindo a fatos os mais distintos, que “pragmaticamente, é ingênuo esperar do Legislativo certas medidas, logo, devemos recorrer ao Judiciário para ver realizadas as mudanças necessárias à sociedade” e que “não podemos ser contra o ativismo porque ele trouxe melhorias ao Brasil”. Durante anos, eu ouvi isso. Ouvi e me desesperei. Tentei alertar sobre os perigos desse raciocínio. Nada obtive. Defende-se há muito tempo no Brasil uma atuação institucional de um Poder da República sem qualquer tentativa de esboçar uma legitimidade jurídica, mas com um argumento estritamente pragmático: “funciona, os Poderes legitimados não vão agir, então, o Judiciário pode”. “Se funciona, pode” – com base nessa (ausência de) filosofia gerou-se uma permissão para juízes se arrogarem de donos do país e perderem qualquer respeito pelas instituições.

Tenho várias testemunhas de que, em muitas dessas ocasiões, em minha aflição com a nudez do rei unanimemente aplaudida nos auditórios jurídicos nacionais, exclamei que, se o Judiciário pode declarar “é ingênuo esperar que o Legislativo faça, então, eu faço”, o que impede os militares de amanhã dizerem “é ingênuo esperar uma solução dos Poderes, então, vamos botar os tanques na rua”? Se o fundamento é “quem tem legitimidade para resolver não vai resolver, logo, quem tem a faca e o queijo na mão pode chamar para si”, isso vale na mesma medida para o ativismo judicial e para uma intervenção militar.

Achei engraçado a elite do progressismo jurídico tendo ataques de nojinho com o tuíte “ameaçador” do general. Mais uma vez, chafurdam na lama que inventaram. Se o raciocínio “a sociedade precisa de x; quem tem legitimidade para fazer x é a instituição y; é irrealista esperar que a instituição y faça x; logo, eu mesmo faço”, vale para o Judiciário, por que não vale para os militares? Pau que dá em Chico tem que dar em Francisco. É preciso muita cara-de-pau para defender durante décadas o ativismo judicial e, de repente, se achar no direito de dizer às Forças Armadas que “elas têm que se ater ao papel institucional que lhes é legalmente reservado”. Ou todos têm que se ater ao seu papel constitucional, ou a licença para impor à Bangu a solução que eu quero para o país será dada inclusive àqueles de quem eu não gosto. Só um reles sofista tentará demonstrar diferenças entre o ativismo judicial e a intervenção militar.

IV) Engana-se quem pensa o drama se encerrou na última quarta-feira (ou ontem, com a prisão de Lula). Essa decisão se refere a um habeas corpus impetrado pelo ex-presidente. Ainda pende no STF uma ADC (ação abstrata, ou seja, que pede à corte para firmar uma tese sobre a lei em si e não sobre um caso concreto) que visa à revisão (ou confirmação) do entendimento geral sobre a prisão em segunda instância. Essa ADC já foi devolvida pelo relator e apenas aguarda a presidente do Tribunal pautá-la.

A Ministra Rosa Weber, que deu o voto decisivo para a manutenção da jurisprudência, sinalizou em sua fundamentação que apenas mudava seu entendimento (contra prisão em segunda instância) porque se tratava de uma ação concreta, e entendia que, em nome da segurança jurídica, devia aplicar o entendimento do plenário em ação abstrata e erga omnes anterior, mas que, se o tema voltasse a ser discutido em abstrato (na nova ADC), retornaria a sua posição original. Isso significa que, amanhã, daqui a uma semana ou um mês, pode ser pautada a ADC, e o entendimento do Supremo se reverter, e serem soltos Lula e outros na mesma situação.

O mais importante é que isso denuncia que o processo foi conduzido de modo totalmente incompetente e irresponsável por Cármen, a presidente. Nos dias anteriores, ela fora pressionada para pautar a ADC. Nada fez e permitiu que se instalasse uma guerra entre dois grupos de Ministros da corte. Ela, obviamente, deveria ter pautado a ADC antes do HC de Lula. Ao não fazê-lo, ateou chamas no país por uma decisão que pode ser anulada em pouco tempo. Agora, o Brasil passou por uma violenta crise desnecessária e será obrigado a passar por outra quando a ADC for a plenário. Esse dia, acontecerá tudo de novo: clima de batalha, cenas lamentáveis, extremismos, trepidações institucionais, indiretas de generais no Twitter. Não adianta nada ir para a televisão pedir serenidade se você conduz a crise com um jato de gasolina no lugar da água.

Se Cármen se recusar a pautar a ação, seu mandato se encerra em setembro, quando ela será substituída por Toffoli (que, certamente, pautará). Agora, imaginem (para irmos longe na possibilidade de caos) se Toffoli resolve convocar esse julgamento para a semana das eleições. Se os responsáveis pelos destinos do país não tiverem a prudência de controlar os ânimos de parte a parte, tudo pode acontecer. Podemos chegar a uma guerra civil e ao fim da era da atual Constituição (que, aliás, já está fazendo hora extra), com um novo vácuo institucional, aberto ao mais completo caos.

Já que sempre é possível extrair um bem de males eventuais, teremos a chance de restauração da gloriosa monarquia, o único sistema de governo que prosperou no Brasil até hoje. Não custa sonhar.

Gustavo França é mestre em filosofia pela UFRJ. Tem experiência na área de Filosofia do Direito e Filosofia Moral, com ênfase particular na ética de Kant, além de direito natural, teorias da justiça e fundamentos da vida intelectual.

Notas: 

O presente artigo foi extraído de uma postagem do autor na sua página do facebook no dia 08 de abril de 2018.

*O título é do site

 (1) Quarta-feira – 04/04/2018

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