
Jean-Jacques Rousseau é frequentemente exaltado como o profeta da liberdade moderna, mas seu conceito de “vontade geral” (1) — pedra angular de sua filosofia política — revela-se, à luz de um exame mais criterioso e à partir de um ponto de vista conservador/tradicional, não só vago como perigosamente impraticável. Como nos apresenta Frederick Copleston (2), Rousseau afirma que o contrato social autêntico consiste na unificação de todos os indivíduos sob a direção suprema da vontade geral, de modo que cada membro se torne parte indivisível de um todo moral e coletivo. O Estado, assim constituído, passa a ser soberano apenas enquanto expressão desse novo ser moral — o povo em sua totalidade — cujo “querer” comum é identificado como justo e infalível por natureza. No entanto, Rousseau alerta: o que deve prevalecer não é a “vontade de todos”, soma de desejos particulares e interesses egoístas, mas sim a “vontade geral”, orientada exclusivamente para o bem comum. A distinção é fundamental. Todavia, não basta a distinção; é preciso uma garantia de que essa vontade verdadeiramente “geral” seja possível de se conhecer e aplicar na prática — e é exatamente nesse ponto que começam os problemas.

A crítica que se impõe é que Rousseau atribui uma aura quase mística a essa vontade geral, como se fosse uma entidade metafísica capaz de guiar infalivelmente o corpo político rumo ao bem. Ao mesmo tempo, sua teoria desautoriza, ou mesmo hostiliza, a mediação por associações, partidos, corporações ou religiões — pois para ele, tais “sociedades parciais” corromperiam a pureza do querer coletivo. Porém, como nota o professor Olavo de Carvalho, esse modelo utópico ignora as estruturas reais da convivência humana. Rousseau parece partir da suposição de que o povo, tomado como uma massa de indivíduos atomizados, desprovidos de vínculos intermediários, seria capaz de chegar a um consenso moral elevado e lúcido — bastando que “pensem suas próprias ideias” em vez de se deixarem influenciar por grupos organizados. Ora, essa expectativa contradiz tanto a experiência histórica quanto a antropologia realista: as massas não são compostas por indivíduos iluminados, mas por almas ordinárias, mais inclinadas à confusão do que à sabedoria. E é impossível não serem influenciadas – na maior parte do tempo por mentes maquiavélicas, com uma retórica demagógica extremamente competente em manipular.

No sistema tradicional das castas hindus, por exemplo, seria impensável atribuir à casta shudra — a classe das massas — a condução da vontade coletiva. Esperava-se discernimento apenas dos kshatriyas e dos brahmanes, as castas guerreira e sacerdotal, cuja formação espiritual e intelectual as tornava aptas a deliberar sobre o bem comum (3). Rousseau, ao postular uma soberania baseada na vontade geral formada por todos os cidadãos indistintamente, desloca a autoridade do eixo vertical — de cima para baixo — para um eixo horizontal nivelador. Isso, na prática, equivale a destruir qualquer princípio de hierarquia natural e abrir o campo para o advento da demagogia. Um povo fragmentado, sem tradição, sem corpos intermediários, torna-se presa fácil do primeiro retórico habilidoso que saiba manipular suas paixões.

A imagem do “galinheiro entregue à raposa” se encaixa perfeitamente: sem vínculos protetores, o indivíduo isolado é frágil, e a “vontade geral” pode rapidamente degenerar em tirania da maioria ou na imposição arbitrária da vontade de um grupo dominante que se arvora representante do povo. Estaria assim, configurada a “invasão vertical dos bárbaros” como entendia Mário Ferreira dos Santos (4.) (Entendam bem: minha crítica à ideia de “vontade geral” em Rousseau não significa que esteja defendendo os direitos de uma casta privilegiada, que de cima imporia suas arbitrariedades a todo o povo. O que estou criticando é justamente como um povo isolado, sem organizações descentralizadas e independentes do governo, se torna facilmente vítima justamente de uma casta de privilegiados que possam vir a exercer o poder de forma completamente ilegítima, manipulando um povo fraco e desorganizado).

Mais ainda: a própria possibilidade de identificar essa “vontade geral” é envolta em ambiguidade. Copleston é preciso ao notar que, se definirmos a vontade geral como “o que é bom para todos”, caímos em tautologia: o bem comum é o bem comum. Mas quem o define? Rousseau não oferece critérios objetivos. A solução que ele propõe é a figura do “legislador” iluminado (5) uma espécie de fundador mítico que, embora não detenha poder soberano, orienta os cidadãos a discernirem seu verdadeiro bem. Esse artifício apenas reforça a fragilidade da teoria: a vontade geral, para se realizar, dependeria da ação de um sábio quase profético — o que, para além da ficção, nunca deixou de ser exceção histórica. E, o que afinal, torna a teoria contraditória: da “vontade geral” do povo passamos a vontade única de um iluminado.
De fato, o próprio Rousseau abre a porta para o autoritarismo quando escreve que o cidadão que se recusa a obedecer à vontade geral deve ser “forçado a ser livre”. Essa fórmula, cuja ambiguidade é flagrada por Copleston, pode ser usada para justificar qualquer violência estatal em nome de uma liberdade redefinida. O que deveria ser um espaço de deliberação se transforma em uma armadilha retórica, onde o dissidente é considerado escravo de seus apetites e, por isso, compelido a aceitar a lei como se fosse sua. Salta aos olhos o paradoxo: não é liberdade o que está sendo preservado, mas sim o poder coercitivo do Estado disfarçado sob a linguagem moralista.
Por isso, a vontade geral de Rousseau, longe de ser um ideal de justiça, é um projeto perigoso de reorganização social que elimina a mediação da tradição, da religião e das instituições duradouras. Em nome de uma liberdade abstrata, ele destrói as liberdades concretas. E ao abolir os corpos intermediários, dissolve os anticorpos naturais da sociedade contra o totalitarismo. A crítica conservadora/tradicional, portanto, não recusa o bem comum como princípio, mas exige que ele seja reconhecido e defendido por aqueles que têm capacidade moral e intelectual para fazê-lo. Rousseau, ao ignorar essa verdade elementar, acaba por propor uma teoria que, quando aplicada, conduz não à liberdade, mas à servidão disfarçada de virtude.
Vinícius Féres Rocha
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Referências:
-Uma História da Filosofia – volume III, Frederick Copleston, Vide Editorial
-Curso: História Essencial da Filosofia, Olavo de Carvalho, É Realizações
-Invasão Vertical dos Bárbaros, Mário Ferreira dos Santos, É Realizações
(Imagem: The Garden of Earthly Delights by Bosch)
Notas do olivereduc.com COMPLETAR
- Vontade geral:
- Frederick Copleston,
- As castas indianas, origem, funções e direitos
- Ferreira dos Santos.
- Tal como Barroso vê a si mesmo e os companheiros
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