A IGREJA INTERIOR E A TRANSCENDÊNCIA DO FEUDALISMO

Nota prévia do olivereduc.com: Foi no final de meu curso ginasial e no colégio que conheci uma visão católica da Idade Média graças ao meu professor de história na época. O que Vinicius Féres analisa no artigo que segue tem muito de comum com o que aprendi. Uma pequena diferença é que vi o sistema feudal não como precário, mas como uma evolução histórica que foi sacralizada pela Igreja. Assim, o sistema, após o século XI, era tido como algo a ser admirado, em que pese, eventuais falhas próprias da condição humana. Essa divergência, contudo, não impede de vermos outras explicações da Idade Média. Na história, tudo pode ser aprofundado e esclarecido e eu fui sempre aberto ao contraditório. Eis porque resolvi postar o texto de Vinicius. Como já disse a ele, em mensagem, rogo a Deus para que ele aprofunde seus estudos. (V.O.).

Vinicius Féres Rocha

“Ao contemplarmos os séculos da Idade Média, especialmente o seu momento de maior fulgor espiritual e intelectual, é impossível não perceber que a Igreja, longe de ter sido uma simples peça do tabuleiro feudal, foi antes o fermento silencioso que levedava a massa de uma civilização nascente. Daniel-Rops, com sua agudeza, nos mostra que a Igreja, no decurso medieval, rompeu aos poucos com os vínculos precários do sistema feudal, superando-o não por meio de rupturas violentas ou lógicas revolucionárias, mas por uma transformação interior, silenciosa e profunda.

Foi neste cenário – no chamado período teocêntrico – que a Igreja se reconfigurou, voltando-se mais para a salvação das almas, transcendendo os limites do sistema feudal, instituídos pelo poder temporal. A aparição das ordens mendicantes, como os franciscanos, dominicanos, capuchinhos e premonstratenses, foi mais do que uma reforma moral: foi a emergência de uma nova concepção eclesial. Uma Igreja de missões, uma Igreja das universidades, em que a vida espiritual e intelectual se entrelaçavam, moldando não apenas as almas, mas também as estruturas sociais e culturais da cristandade.

Essa interiorização do espírito cristão impulsionou não apenas a pregação evangélica, mas também um florescimento sem precedentes da cultura, da ciência, da filosofia e das ideias políticas. As grandes catedrais se ergueram como testemunhos de fé e de engenho humano; as universidades tornaram-se centros do pensamento; e até mesmo o comércio – tantas vezes injustamente atribuído ao impulso exclusivo da burguesia – começou a se desenvolver nesse mesmo caldo cultural promovido pela Igreja.

Santo Ambrósio impedindo o imperador Teodósio de entrar no templo

O sistema feudal, por sua vez, deve ser visto como o que de fato foi: um arranjo histórico e circunstancial, surgido diante das invasões bárbaras – normandas, eslavas, magiares. Não foi necessário à Igreja, mas sim tolerado por ela, enquanto se aguardava o tempo da renovação. A verdadeira superação do feudalismo não foi obra direta da classe burguesa, mas sim fruto do amadurecimento interno da própria Idade Média, como um renascimento genuíno – no sentido que lhe atribui Jacques Le Goff.

Com o fim das invasões, a ampliação dos horizontes culturais, o contato com a filosofia árabe e persa, e o ressurgimento das cidades, não havia mais lugar para o rígido enclausuramento feudal. A cultura que despontava era outra: mais intelectual, mais missionária e, sobretudo, mais espiritual. Nesse novo espírito, a Igreja reencontrava sua vocação primitiva, mais fiel à Igreja dos Apóstolos, desapegada dos laços mundanos, testemunha da eternidade no tempo.

É estreiteza de vistas enxergar no regime feudal um sistema ideal ou necessário. Ele foi apenas um momento, um arranjo provisório diante da violência das invasões. O verdadeiro motor da história medieval foi a Igreja, enquanto alma de uma civilização que não apenas sobreviveu aos escombros do mundo antigo, mas renasceu das próprias cinzas, como obra viva do Espírito.

A compreensão mais lúcida da história exige, portanto, que se veja o feudalismo não como um ideal cristão, mas como um expediente histórico de ocasião, cuja utilidade se esgotou à medida que a Europa readquiriu estabilidade e perspectiva. O espírito cristão que animou a Alta Idade Média não encontrou sua expressão mais elevada na rigidez hierárquica dos senhores e vassalos, mas na liberdade interior dos santos, dos pregadores itinerantes, dos mestres das escolas e dos homens de oração. A Igreja que floresce com as ordens mendicantes é aquela que mais se assemelha à Igreja apostólica: despojada, ardente, viva. Sua força não está mais nos castelos, mas nos púlpitos; não nas investiduras, mas nos corações conquistados pela Palavra. É neste momento que o cristianismo deixa de ser apenas um sustentáculo da ordem política para tornar-se, novamente, fermento de uma nova sociedade – mais complexa, mais dinâmica e mais profundamente enraizada na dignidade da alma humana.

Por isso mesmo, seria um erro de perspectiva atribuir exclusivamente à classe burguesa o fim da Idade Média – foi a “cultura” burguesa em oposição a uma cultura mais aristocrática e sacerdotal. O crescimento das cidades na Idade Média, e o florescimento do comércio internacional abriria a rota para novos empreendimentos, e daí surgiria naturalmente a classe burguesa, o fortalecimento dos artesãos, produtores e construtores, e com eles novas exigências, novas modas, e a ampliação de perspectivas. E tudo isso estava em germe na Idade Média, como uma criação propriamente sua. Futuramente tudo isso vai desembocar na revolução industrial. Mas já no século XVI a Escola de Salamanca, estava formando um campo doutrinal para sustentar todo esse mundo do comércio florescente. (confira mais sobre isso em: https://historiaetradicao.wordpress.com/4-conclusoes…/

É uma total estreiteza de vistas, desconhecimento da História e de suas leis, creditar totalmente à classe burguesa (ou melhor, ao comércio internacional) o fim da Idade Média. Outro ponto que posso discorrer melhor em um próximo artigo é: a Igreja Católica Não É a Idade Média, e querer a volta da Idade Média como um Nikolai Berdiaev com sua Uma Nova Idade Média, é um total disparate. (Só um adendo: youtubers, na média, não são historiadores, e não sabem interpretar a História).

O que vemos, ao fim e ao cabo, não é uma ruptura violenta entre Igreja e mundo, mas a lenta maturação de um tempo novo, prenunciado já no seio do século XIII, quando a Cristandade atinge seu zênite de expressão espiritual e intelectual. Ali, no âmago desse período, a Igreja não apenas sobrevive ao mundo feudal: ela o transcende. E ao fazê-lo, prepara silenciosamente o terreno sobre o qual se erguerá a civilização ocidental em uma nova forma. A Igreja está no mundo, mas não é do mundo. Enquanto corpo místico de Cristo, ela sempre transcenderá o espírito do tempo em que vive. E não existe uma forma fixa para ela. Por isso repito A idade média NÃO É a Igreja Católica, muito menos o regime feudal é um tipo ideal – ele foi um arranjo circunstancial.

Não estou sendo contraditório com esse texto em relação aos anteriores que escrevi em elogio a Idade Média. É apenas uma ponderação. A Idade Média tem seus méritos e defeitos. Mas a História, com suas leis, não volta no tempo. No mundo atual das redes sociais e youtubers (metidos a historiadores) vejo muitos deles, nostálgicos do período medieval, mais amantes da Idade Média do que da própria Igreja.

Fontes:

www.historiaetradicao.wordpress.com

www.instagram.com/historiaetradicao

www.youtube.com/@natrilhadahistoria

Referências:

-História da Europa, 5 volumes, João Ameal, Editora Centro Dom Bosco

-História da Igreja de Cristo, 10 volumes, Daniel-Rops, Quadrante

-Luz sobre a Idade Média, Regine Pernoud, Edições Europa-América

-O Poder e os Tronos, Dan Jones, Crítica

-A Cavalaria, Dominique Barthélemy, Editora Unicamp

-História da Idade Média, Georges Minois, Editora Unesp

Nota: o quadro acima representa o grande Santo Ambrósio expulsando o imperador Teodósio da igreja. Vinicius explica que representa, de certo modo, a autoridade espiritual superando o poder temporal.

Vinícius Féres Rocha é graduado em Direito, tem como profissão a advocacia e tem se dedicado, especialmente, ao estudo da história e da filosofia da Igreja na Idade Média.

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